See No Evil: um grande pequeno game no Kickstarter

Como um jovem de 19 anos se deu bem com uma campanha de financiamento coletivo de apenas US$ 2.000.


Na época em que o Kickstarter começou a entrar no nosso vocabulário diário, a ideia era promover o trabalho de desenvolvedores nanicos até virar um grande projeto. A empolgação só cresceu quando nomes importantes do desenvolvimento, como Tim Schafer e Brian Fargo, queriam entregar pros seus fãs os jogos que eles sempre sonharam, mas que haviam sido antes rejeitados por grandes publishers, mitologicamente gananciosas demais para projetos mais simples como os desses criadores clássicos. O Kickstarter era a esperança dos esquecidos – uma promessa de que não importava o seu tamanho ou os seus contatos na indústria, se você pudesse conquistar o público com a sua ideia, era possível juntar uma grana e transformar o sonho em realidade.
E aí as coisas mudaram um pouco. Pra pior. De repente, os sucessos do Kickstarter deixaram de bater a casa das centenas ou milhares de dólares, e começaram a chegar nos milhões. De repente, os estúdios pequenos já não pareciam tão pequenos assim: eles eram gigantes, chamando a atenção da grande mídia de games, e subindo na vida abraçado com sacolas e mais sacolas de dinheiro.

De certa forma, isso foi brilhante. Por conta disso, ganhamos jogos como Broken Age (bom, pelo menos uma parte dele) e Wasteland 2. Pillars of Eternity, Tides of Numenera e Elite: Dangerous estão a caminho. Os artistas que criaram jogos incríveis há anos estão fazendo novos jogos incríveis novamente.


                                      

Mas o que aconteceu com os pequenos estúdios? Aqueles que lançam ideias mais simples no meio da cratera deixada pela pegada dos gigantes? O Kickstarter agora serve para quê mesmo?

"Me lembro na pré-escola de recortar caixas de papelão, eu fazia um buraco no lugar onde seria a tela e o que sobrava virava um controle de papelão”, me contou Gabriel Priske, desenvolvedor do inédito See No Evil, um jogo de puzzle com perspectiva isométrica. “Eu pegava um palito e amarrava um bonequinho de Lego na ponta. Às vezes eu criava sistemas de jogos bem elaborados. O que era estranho é que eu não jogava tanto videogame assim quando era moleque. Só curtia mesmo a ideia. Acho que sempre gostei mais da ideia de fazer jogos e o que poderiam se tornar do que jogar eles em si.”

A campanha de Kickstarter de See No Evil rolou de um jeito muito diferente do que estamos acostumados a ver nas manchetes de sites. Primeiramente, apesar da equipe ser completamente desconhecida, o game já estava praticamente pronto. Tinha até uma demo jogável. Além disso, a meta de financiamento final não era nada que fosse necessário guardar em um grande cofre no banco – Priske e seus parceiros queriam apenas US$ 2.000, ou € 1.500. Como o criador do jogo disse no vídeo de apresentação da campanha, a equipe estava trabalhando até então usando a grana do próprio bolso.


"A nossa pequena meta serve apenas para nos dar tempo de polir o jogo e fazê-lo exatamente do jeito que queremos”, ele disse.

Tem uma questão ainda menos convencional nessa história toda: Priske tem apenas 19 anos. A diferença entre esse pequeno criador e os gigantes que o precederam não poderia ser maior.

O jogo foi finalmente lançado no Steam dia 26 de agosto depois de anos de desenvolvimento. E ele é bom. Em See No Evil, você controla um personagem de olhos brilhantes sem nome próprio, mas que pertence à sociedade de ‘Seers’. Esse não é só um termo mágico e doidinho do jogo – o foco da história (sem dar grandes spoilers) é que os habitantes desse mundo perverso de See No Evil escolheram ficar cegos. Os inimigos que ficam patrulhando não podem te ver, mas eles podem te ouvir – e se isso acontecer, certamente vão atrás de você.

Por conta disso, See No Evil tem uma mistura cruelmente difícil de stealth com quebra-cabeças. Os inimigos ficam parados ou andam em trajetos programados, e o seu objetivo em cada fase é passar despercebido até a saída. Felizmente, você manja de um truque que eles desconhecem: é possível dar um berro, que solta uma onda de som visível em uma determinada direção, distraindo os guardas e fazendo com que eles pisem em botões para abrir portas ou caiam em armadilhas.

Mas isso também exige timing. Se você chegar perto demais de um guarda quando solta um berro, é possível que ele comece a te seguir ouvindo os seus passos, e ele facilmente consegue te alcançar. O jogo é desafiador logo no começo, e conforme se progride, ele fica mais rápido e também mais carrasco, colocando no seu caminho mais guardas e portões, névoas que cortam completamente a sua visão, e pilhas de corpos em decomposição que fazem com que você deixe um rastro de fedor se chegar perto – e é claro que os guardas vão ficar bem felizes em seguir o seu cheiro.

Tudo se parece muito simples falando assim, mas na hora em que o jogo aperta e você se encontra completamente perdido no meio da fase, vai com certeza começar a repetir dentro da sua cabeça, “Isso tem que estar quebrado, isso tem que estar quebrado. É impossível fazer isso! Não tem como solucionar isso e—ah, não, acho que assim... é, é assim mesmo”, várias e várias vezes seguidas.

O jogo foi o primeiro projeto em equipe de Priske, que aprendeu a fazer games depois de passar a infância mexendo em programas como FPS Creator, Game Maker e uns modeladores 3D básicos, como MilkShape. Depois de brincar com programação aos 12 anos, ele começou a fazer pequenas colaborações para projetos de amigos, projetos que ele mesmo chama de “pequenos”, “desbalanceados” e “estranhos”. Essas foram as bases de See No Evil.

"Nunca fui prodígio”, ele disse. “Eu era só um moleque absolutamente obcecado por entretenimento interativo, e que tinha acesso à internet."

"[No See No Evil], eu sabia que queria fazer algo um pouco maior que já tinha feito. Então, eu fiz um documento de design e mandei pro [programador] William Holly e pro [audio designer] Luke Thomas. Os dois entraram com tudo no processo criativo. Desde o primeiro dia, eles queriam tocar o projeto de um jeito que funcionasse. Não queríamos fazer um mash-up de Gears of War, Civilization e Mario como nosso primeiro game comercial.”

“’Coisas fazíveis’ eram a prioridade. Honestamente, começamos com uma ideia de design educativo pro jogo, e não pensávamos muito no público e o que eles achariam do projeto."


De fato, foi um aprendizado. Uma das maiores críticas da explosão da popularidade do Kickstarter é que os pequenos jogos, aqueles que não são carregados pela paixão de uma legião de fãs fiéis, somem perante a sombra dos grandes.

"[Kickstarter não é] exatamente um ambiente amigável”, disse Priske. “O conceito da campanha é ótimo, mas é muito estressante; se você não estiver pronto em tomar umas porradas, é melhor não se meter nessa. É difícil expor o seu trabalho hoje em dia, já que todo mundo está lançando uma campanha no Kickstarter. É por isso que a gente também tentou o Steam Greenlight. Foi um tiro no escuro.”

Conseguir chamar atenção pro seu jogo ou pro seu estúdio de que ninguém ouviu falar é um problema. Apesar de termos exceções à regra (como o inteligente Superhot, por exemplo), se já não tiver um monte de gente que conheça o seu trabalho, o micro-desenvolvedor acaba sendo atropelado pela quantidade de apoiadores dando dinheiro para sucessores espirituais de quaisquer série que abusa da ligação nostálgica do fã com o jogo. Sem qualquer tipo de contato da indústria ou na mídia, Priske e sua equipe decidiu mandar demonstrações do jogo logo antes da E3 para qualquer veículo que estivesse interessado em conhece-lo.

De repente, na noite anterior ao dia do lançamento de See No Evil, tudo mudou.

"Não temos uma equipe de controle de qualidade e testes, então tivemos que jogar muito a gente mesmo para descobrir os bugs”, disse Priske. “O problema é que acostumamos a jogar de um jeito específico. Logo antes de estrear, chamei três amigos para testar. Era para ser mais uma noite de celebração, mas virou um pesadelo quando começamos a descobrir um monte de bugs que não tínhamos encontrado antes. E isso porque eles só estavam testando coisas que a gente não tinha testado.”

"[Então], no processo de consertar o jogo, nossa engine fez uma atualização automática e o game simplesmente quebrou. Tivemos que voltar para uma versão anterior da engine e passamos a noite tentando descobrir e eliminando esses bugs. Isso tudo rolou às três ou quatro da manhã. Era uma bagunça, acho que nunca fiquei tão estressado como naqueles dias.”


Quando o time finalmente conseguiu eliminar todos os problemas, a janela de lançamento já tinha se fechado. A E3 estava a todo vapor e praticamente todo veículo do mundo estava prestando atenção na feira, produzindo quantidades massivas de posts sobre o assunto.

"Era tarde mais”, disse Priske. “O Rock Paper Shotgun chegou a fazer um artigo sobre a gente, mas ele foi logo parar na terceira página do site por conta do conteúdo da E3 em algumas horas. Foi uma batalha."

Apesar da inexperiência da equipe, da falta de cobertura, das versões cheias de bug enviadas pra imprensa e o grande chute que foi a campanha no Kickstarter, See No Evil se deu bem, e finalmente foi lançado. O jogo está logo ali, ao lado de petardos contemporâneos no Steam, como Broken Age, Wasteland 2, Shadowrun Returns, Divinity: Original Sin, e vários outros gigantes do Kickstarter. Mesmo com chegando lá só com US$ 2.000.





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