Longas jornadas distopia adentro na série BioShock


Entre o Vale do Silício e o TeaParty, a série BioShock critíca profundamente a cultura americana.

A história do primeiro BioShock, de 2007, começa em um farol. Na verdade, a história começa em um avião que sofre um acidente e cai no meio do oceano, te obrigando a buscar refúgio em um farol erguido no meio do nada. Sem muita demora, você descobre que na verdade foi parar porta de entrada para Rapture, um gigantesco laboratório social escondido no fundo de águas internacionais, fundado por um magnata renegado chamado Andrew Ryan.

Em Rapture, os sistemas políticos tradicionais não se aplicam. O motor da coisa toda seria a celebração de uma espécie de racionalismo extremo, um modelo radical de organização que, ao demolir as estruturas de regulação e controle exercidas pelos governos, libertaria nas pessoas todo seu potencial criativo e científico – acelerando o progresso, gerando riqueza, apontando a um glorioso futuro para a humanidade. A ideia parece ter funcionado por algum tempo, mas isso só até tudo degringolar e transformar Rapture numa distopia submarina cheia de maníacos superpoderosos armados. E é aí que você entra, e é no seu esforço de sobrevivência ao tentar entender o que aconteceu por lá que a diversão começa.

Não é exagero considerar BioShock uma espécie de clássico recente. Há a absurda atenção ao detalhe em seus gigantescos ambientes, as inovações na mecânica de jogo, a construção narrativa não linear. E há, essencialmente, sua história. BioShock constrói sua distopia sem apelar a meteoros gigantes atingindo a Terra, ou a zumbis, ou a exércitos alienígenas. Em Rapture, não é preciso ir muito longe para enxergar acenos a livros como 1984, de George Orwell, e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, obras de ficção científica dedicadas, mais que qualquer coisa, à especulação política e social.


Em suas obras, Orwell e Huxley construíram distopias a servirem de pano de fundo para tratar de temas como o flerte entre ideologias e ditaduras, ou o uso da ciência como ferramenta de controle político. A distopia de BioShock gravita em torno de outra ideia: uma proposta ideológica conhecida como Objetivismo.

Criado em meados do século XX por Ayn Rand, ensaísta e romancista russa radicada nos EUA, o Objetivismo propõe que o traço essencial dos indivíduos seria o racionalismo, e que a organização da vida e da comunidade deveria ter como eixo essencial sua relação com o que seria a realidade objetiva. Para o Objetivismo, coisas como o governo e a religião serviriam como miragens que, em vez de ajudar a organizar a vida, nublariam a apreensão das coisas do mundo de um jeito real, objetivo, atrasando o desenvolvimento humano e o progresso. O mundo ideal Objetivista seria uma espécie de vida sem estruturas de regulamentação e organização política, orientado basicamente pelo individualismo, pela competição e pelo livre mercado. O que, se você reparar bem, é exatamente o que Andrew Ryan foi tentar fazer no fundo do mar.

Na verdade, BioShock é bastante direto sobre gravitar em torno do Objetivismo. Seu criador e roteirista, Ken Levine, já tratou do assunto em mais de uma ou duas entrevistas, e as referências do jogo à obra de Ayn Rand não chegam a ser exatamente easter eggs. É algo curioso que uma proposição ideológica meio obscura sirva de motor especulativo pra uma das obras de cultura de massa mais populares deste século, mas há algo no Objetivismo que o coloca no centro do universo técnico e cultural onde nasceram os videogames.

Há, na cibercultura a emergir nos EUA a partir dos anos 60, entre hippies, desenvolvedores amadores, e novos empresários de tecnologia, um entusiasmo recorrente com as ideias de Ayn Rand. Na verdade, o Objetivismo é uma proposta realmente popular entre alguns dos responsáveis por marcos da cibercultura como a revista Wired, o Open Source e a Wikipedia, para ficar em alguns poucos exemplos. Um dos fundadores do PayPal, o bilionário Peter Thiel, é criador do Seasteading Institute, entidade dedicada à viabilização de uma cidade flutuante em águas internacionais, um espaço no qual ele pretende experimentar novos arranjos sociais inspirados pelas ideias de Ayn Rand.

Num mundo em que um pedaço dos que mandam parece realmente animado com a possibilidade de construir Raptures reais, parece bem razoável especular com Raptures ficcionais para imaginar onde isso poderia dar.


Em BioShock Infinite, lançado ano passado, a história também começa em um farol – mas, desta vez, você acaba lá por vontade própria. E, se em BioShock você é arremessado para o fundo do oceano e dos desígnios da racionalidade humana, em BioShock Infinite o farol te lança aos céus, a uma retrodistopia flutuante governada por fanáticos religiosos americanos, chamada Columbia.

No episódio inicial de BioShock, a jornada em Rapture se passa em meados do século XX, numa época em que a polarização entre modelos ideológicos e políticos fazia pulsar a história em construções e reconstruções. A Guerra Fria havia transformado o mundo inteiro num grande tabuleiro, e o braço de ferro disputado entre capitalismo e comunismo fazia pairar sobre um bom pedaço do mundo a possibilidade de um completo rearranjo social num futuro muito próximo. Talvez a ideia do laboratório social Objetivista em BioShock não fugisse muito disso, na verdade – ao fim, Rapture seria uma entre tantas experiências numa época de grandes obras de engenharia social.


Em Columbia, a história acontece um pouco antes, no pedaço de tempo que separa o século XIX do século XX. Uma época de consolidação do que viria a desenhar os EUA, trespassado pelas tensões da industrialização e da imigração, pelos rescaldo dos conflitos sociais e ideológicos da Guerra da Secessão, pelos estragos de uma escravidão ainda recente. BioShock Infinite desloca sua ficção especulativa para o campo da História, buscando dialogar com proposições como o conservadorismo social e religioso e o excepcionalismo americano.

Afinal, Columbia é um enclave ultra-nacionalista e fundamentalista religioso que se apresenta tão, mas tão excepcional em seu projeto de nação a guiar os povos que não apenas se separa dos EUA mas, também, de todo o resto do mundo, se erguendo aos céus movida a vapor e mecânica quântica. Columbia se apresenta como um santuário dos “verdadeiros valores americanos”, um lugar onde mantem a salvo de transformações e rearranjos sociais o Destino Manifesto dos Estados Unidos como líder dos povos.

É claro que bem rapidinho se percebe que Columbia descambou para uma distopia comandada por fanáticos religiosos racistas e xenófobos, e que há uma guerra civil a caminho e um tanto de coisas estranhas a serem desvendadas. E você descobrirá tudo isso num longo caminho de quebra pau e explosões e superpoderes tão poderosos que te farão sentir um semideus. Mas, sério, há alguma reflexão no fundo disso tudo.






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